Artigo em revista da feira
Batman é humanamente possível?
Christian Bale resumiu bem as duas principais dimensões de um personagem pra lá de famoso. Em sua breve apresentação na entrevista coletiva de pré-lançamento do filme Batman Begins (2005) em Tóquio, o ator galês disse estar honrado por representar um “mito moderno” e um “ícone cultural” com milhões de seguidores mundo afora. Nesse clássico do cinema dirigido pelo inglês Christopher Nolan o próprio Bruce Wayne também conceituou o arquétipo que incorporaria mais adiante, apontando razões para se tornar o maior herói da igualmente fictícia Gotham City, metrópole dos Estados Unidos.
O bilionário explicou que precisava ser “mais do que um homem”. Queria ser um símbolo, algo que fosse ao mesmo tempo inspirador e incorruptível. Mais tarde, o morcego seria a figura escolhida para definir o traje e o espírito de sua guerra pessoal contra o crime e a marca indelével de uma lenda presente nas histórias em quadrinhos e na nossa realidade. As declarações de Bale, intérprete de Batman em carne e osso, e a fala de Wayne, identidade secreta do mascarado, revelam o segredo de sucesso ininterrupto há 71 anos, com passagem por todas mídias e fases ditadas pelos gibis.
O homem-morcego da DC Comics, criado pelo cartunista Bob Kane e presente no imaginário universal, seduz o público há décadas em virtude de um perfil peculiar. A biografia do super-herói sem poderes herdados da magia, de alienígenas ou de um acidental milagre da ciência encanta até hoje gente de culturas diversas. Suas habilidades físicas e mentais extraordinárias são frutos de conhecimento acumulado, duro treinamento e arsenal tecnológico sustentado por pesquisas e a fortuna da família.
A resposta à pergunta do título é a que explica o sufixo “super” no também chamado maior detetive do mundo. Por detrás de todas suas atitudes ao aterrorizar criminosos há uma fortíssima força de vontade, capaz de mover montanhas, vencer exércitos e moldar uma vida inteira. Essa cruzada de fé parece ainda mais incrível por ter sido feita por um menino órfão e traumatizado. O rabino americano Cary Friedman, autor de Wisdom from the Batcave, é quem melhor disseca essa escolha transcendente.
Diante do túmulo dos pais, assassinados por um assaltante, Bruce decidiu consagrar toda a sua existência ao combate da iniquidade, para que outros não sofressem o mesmo. O desejo de vingança e o desalento se converteram em altruísmo e na busca por justiça. Mas o paladino nascido a partir de duas balas disparadas a queima roupa num beco escuro está longe de ser o modelo heróico mais conhecido.
Em sua dimensão trágica, ele veste o manto negro e nutre-se de medos ancestrais da noite para combater o que de pior foi gerado pela humanidade. A máscara é o rosto verdadeiro de Batman e Cavaleiro das Trevas, seu melhor epíteto. O roteirista Dennis O’neil acrescenta que a atração pelo herói está numa mistura improvável de visual demoníaco com a confiança dos oprimidos. Morcegos me mordam! Não há nada mais humano do que transcender pelo esforço e pela arte.
Afinal, Batman poderia mesmo existir no nosso mundo? A discussão já virou tema de livros e está em centenas de fóruns de aficionados na internet. A seriedade de especialistas recomenda levar em conta diversos elementos expostos nas aventuras do herói para concluir o óbvio: o mais provável dos vigilantes urbanos dos quadrinhos é possível, mas improvável. Em clássicos gibis como Morte em Família, Cavaleiro das Trevas, Piada Mortal, Hush, O Longo Dia das Bruxas, Ano Um e tantos outros estão memórias da coletividade.
Uma mente perturbada como a de Batman poderia existir. Difícil de acreditar numa escalada de sucessos para defender a integridade de seu refúgio numa caverna localizada estrategicamente no subsolo de sua mansão e no combate cotidiano matadores covardes e terroristas com a prerrogativa de “nunca matar”. A loucura se espraia em vilões fantasiados de animais, palhaços e personagens da história e da literatura.
Esse cara que luta com bandidos armados de elevadíssimo calibre lança bumerangues em forma de asa de morcego e cápsulas de gás para fazer seu espetáculo de dissuasão com destreza? O herói acrobata usa uma capa enorme que não o cria embaraços nos dois sentidos e distribui socos e pontapés certeiros e de elevado impacto. Atleta e artista marcial em múltiplas categorias, Batman vence virtualmente qualquer um no mano a mano e é o Houdini dos tempos modernos ao escapar de qualquer armadilha.
Ele comeu o pão que o diabo amassou, recebeu golpes que estão gravados em dezenas de cicatrizes no tronco, braços e pernas e ainda treinou aliados como menino prodígio Robin para o campo de batalha. Não tombou em definitivo e segue até os dias de hoje protegendo Gotham do Coringa, seu arqui-rival, e de outra tantas ameaças, com objetos especiais e veículos de ar, terra e mar.
No livro Becoming Batman: The Possibility of a Superhero, Paul Zehr, professor de cinesiologia (ciência dos movimentos do corpo humano) e neurociência da Universidade de Vitória, na Columbia Britânica (Canadá), vê o homem-morcego como um competidor do decatlo. Ser campeão em força e rapidez ao mesmo tempo intriga o pesquisador, que aposta em 10 anos de treinamento para chegar ao nível de proeza sugerido. Se considerar as habilidades em escapar de armadilhas e dominar técnicas de criminologia, disfarce, química e outros tópicos, seu manual sugere que esse prazo pode subir para até 18 anos.
O fato é que acreditamos na remota possibilidade de esse homem, rico e habilidade, realmente poder existir. Se o improvável nos quisesse colocar dúvidas, lembramos que o Morcegão abusa de teatralidade, explorando a ilusão das sombras e do medo para driblar facas e rajadas de metralhadora. Essa é a insuperável seara dos quadrinhos, onde o leitor é convidado como Alice a adentrar um país de maravilhas. Mesmo o realismo sendo perseguido por desenhistas e roteiristas nas histórias de Batman desde os anos 1970, o aspecto fantasioso e até místico trespassa, alimentando o mito.
Se não é “super” em conseqüência de dávidas externas, mas por tomadas de decisão, o herói também pode ser um baluarte de sonhos para crianças e adultos. Basta vestir a fantasia para começar a se sentir meio Batman. Não há dúvida de que isso explicaria o fato de a maioria dos meninos preferirem brincar com a capa de a máscara deste personagem. Os anos passam e a magia do cruzado continua pelas páginas de quadrinhos.
A parte mais concreta disso tudo, do lado de que cá do espelho, é uma indústria bilionária a explorar a iconografia do herói. Do cinema aos games, dos quadrinhos aos produtos licenciados, dos DVDs aos livros de bolso. Batman é tão presente que já se deu ao luxo de virar paródia cotidiana de peças de teatro e filmes de baixo orçamento, além de ser mote para charges e músicas de banda de rock.
E ainda se é possível encontrar um mito dentro do mito, ainda temos a trajetória de Adam West, o ator que entrou para a eternidade como sendo o Batman da vida real, graças ao sucesso de sua interpretação no seriado cômico da TV nos anos 1960. O maior especialista no mundo sobre esse fenômeno, o brasileiro Jorge Ventura, autor do livro Sock! Pow! Crash! Batman é humanamente possível na sua multifacetada projeção de tantos anseios, angústias e talentos humanos. E improvável em carrega-las todas em um só homem.
* Jornalista e autor de Dicionário do Morcego (Flama, 2005)
Sílvio Ribas*
Christian Bale resumiu bem as duas principais dimensões de um personagem pra lá de famoso. Em sua breve apresentação na entrevista coletiva de pré-lançamento do filme Batman Begins (2005) em Tóquio, o ator galês disse estar honrado por representar um “mito moderno” e um “ícone cultural” com milhões de seguidores mundo afora. Nesse clássico do cinema dirigido pelo inglês Christopher Nolan o próprio Bruce Wayne também conceituou o arquétipo que incorporaria mais adiante, apontando razões para se tornar o maior herói da igualmente fictícia Gotham City, metrópole dos Estados Unidos.
O bilionário explicou que precisava ser “mais do que um homem”. Queria ser um símbolo, algo que fosse ao mesmo tempo inspirador e incorruptível. Mais tarde, o morcego seria a figura escolhida para definir o traje e o espírito de sua guerra pessoal contra o crime e a marca indelével de uma lenda presente nas histórias em quadrinhos e na nossa realidade. As declarações de Bale, intérprete de Batman em carne e osso, e a fala de Wayne, identidade secreta do mascarado, revelam o segredo de sucesso ininterrupto há 71 anos, com passagem por todas mídias e fases ditadas pelos gibis.
O homem-morcego da DC Comics, criado pelo cartunista Bob Kane e presente no imaginário universal, seduz o público há décadas em virtude de um perfil peculiar. A biografia do super-herói sem poderes herdados da magia, de alienígenas ou de um acidental milagre da ciência encanta até hoje gente de culturas diversas. Suas habilidades físicas e mentais extraordinárias são frutos de conhecimento acumulado, duro treinamento e arsenal tecnológico sustentado por pesquisas e a fortuna da família.
A resposta à pergunta do título é a que explica o sufixo “super” no também chamado maior detetive do mundo. Por detrás de todas suas atitudes ao aterrorizar criminosos há uma fortíssima força de vontade, capaz de mover montanhas, vencer exércitos e moldar uma vida inteira. Essa cruzada de fé parece ainda mais incrível por ter sido feita por um menino órfão e traumatizado. O rabino americano Cary Friedman, autor de Wisdom from the Batcave, é quem melhor disseca essa escolha transcendente.
Diante do túmulo dos pais, assassinados por um assaltante, Bruce decidiu consagrar toda a sua existência ao combate da iniquidade, para que outros não sofressem o mesmo. O desejo de vingança e o desalento se converteram em altruísmo e na busca por justiça. Mas o paladino nascido a partir de duas balas disparadas a queima roupa num beco escuro está longe de ser o modelo heróico mais conhecido.
Em sua dimensão trágica, ele veste o manto negro e nutre-se de medos ancestrais da noite para combater o que de pior foi gerado pela humanidade. A máscara é o rosto verdadeiro de Batman e Cavaleiro das Trevas, seu melhor epíteto. O roteirista Dennis O’neil acrescenta que a atração pelo herói está numa mistura improvável de visual demoníaco com a confiança dos oprimidos. Morcegos me mordam! Não há nada mais humano do que transcender pelo esforço e pela arte.
Afinal, Batman poderia mesmo existir no nosso mundo? A discussão já virou tema de livros e está em centenas de fóruns de aficionados na internet. A seriedade de especialistas recomenda levar em conta diversos elementos expostos nas aventuras do herói para concluir o óbvio: o mais provável dos vigilantes urbanos dos quadrinhos é possível, mas improvável. Em clássicos gibis como Morte em Família, Cavaleiro das Trevas, Piada Mortal, Hush, O Longo Dia das Bruxas, Ano Um e tantos outros estão memórias da coletividade.
Uma mente perturbada como a de Batman poderia existir. Difícil de acreditar numa escalada de sucessos para defender a integridade de seu refúgio numa caverna localizada estrategicamente no subsolo de sua mansão e no combate cotidiano matadores covardes e terroristas com a prerrogativa de “nunca matar”. A loucura se espraia em vilões fantasiados de animais, palhaços e personagens da história e da literatura.
Esse cara que luta com bandidos armados de elevadíssimo calibre lança bumerangues em forma de asa de morcego e cápsulas de gás para fazer seu espetáculo de dissuasão com destreza? O herói acrobata usa uma capa enorme que não o cria embaraços nos dois sentidos e distribui socos e pontapés certeiros e de elevado impacto. Atleta e artista marcial em múltiplas categorias, Batman vence virtualmente qualquer um no mano a mano e é o Houdini dos tempos modernos ao escapar de qualquer armadilha.
Ele comeu o pão que o diabo amassou, recebeu golpes que estão gravados em dezenas de cicatrizes no tronco, braços e pernas e ainda treinou aliados como menino prodígio Robin para o campo de batalha. Não tombou em definitivo e segue até os dias de hoje protegendo Gotham do Coringa, seu arqui-rival, e de outra tantas ameaças, com objetos especiais e veículos de ar, terra e mar.
No livro Becoming Batman: The Possibility of a Superhero, Paul Zehr, professor de cinesiologia (ciência dos movimentos do corpo humano) e neurociência da Universidade de Vitória, na Columbia Britânica (Canadá), vê o homem-morcego como um competidor do decatlo. Ser campeão em força e rapidez ao mesmo tempo intriga o pesquisador, que aposta em 10 anos de treinamento para chegar ao nível de proeza sugerido. Se considerar as habilidades em escapar de armadilhas e dominar técnicas de criminologia, disfarce, química e outros tópicos, seu manual sugere que esse prazo pode subir para até 18 anos.
O fato é que acreditamos na remota possibilidade de esse homem, rico e habilidade, realmente poder existir. Se o improvável nos quisesse colocar dúvidas, lembramos que o Morcegão abusa de teatralidade, explorando a ilusão das sombras e do medo para driblar facas e rajadas de metralhadora. Essa é a insuperável seara dos quadrinhos, onde o leitor é convidado como Alice a adentrar um país de maravilhas. Mesmo o realismo sendo perseguido por desenhistas e roteiristas nas histórias de Batman desde os anos 1970, o aspecto fantasioso e até místico trespassa, alimentando o mito.
Se não é “super” em conseqüência de dávidas externas, mas por tomadas de decisão, o herói também pode ser um baluarte de sonhos para crianças e adultos. Basta vestir a fantasia para começar a se sentir meio Batman. Não há dúvida de que isso explicaria o fato de a maioria dos meninos preferirem brincar com a capa de a máscara deste personagem. Os anos passam e a magia do cruzado continua pelas páginas de quadrinhos.
A parte mais concreta disso tudo, do lado de que cá do espelho, é uma indústria bilionária a explorar a iconografia do herói. Do cinema aos games, dos quadrinhos aos produtos licenciados, dos DVDs aos livros de bolso. Batman é tão presente que já se deu ao luxo de virar paródia cotidiana de peças de teatro e filmes de baixo orçamento, além de ser mote para charges e músicas de banda de rock.
E ainda se é possível encontrar um mito dentro do mito, ainda temos a trajetória de Adam West, o ator que entrou para a eternidade como sendo o Batman da vida real, graças ao sucesso de sua interpretação no seriado cômico da TV nos anos 1960. O maior especialista no mundo sobre esse fenômeno, o brasileiro Jorge Ventura, autor do livro Sock! Pow! Crash! Batman é humanamente possível na sua multifacetada projeção de tantos anseios, angústias e talentos humanos. E improvável em carrega-las todas em um só homem.
* Jornalista e autor de Dicionário do Morcego (Flama, 2005)
Comentários
Acho que parte da "vitalidade" do Batman se dá por ele ser "aquilo que queriamos ser". Seja como Bruce Wayne, ou como Batman, muito do personagem é um "realização' de um sonho, a ponto de que algumas pessoas, incluindo alguns escritores da DC durante a era de prata dos quaadrinhos, esquecem dos problemas do personagem, e só lembram do milionário, e do homem que sozinho trás justiça para gotham (mas que na verdade, o faz por servir de exemplo para a população, ou não produz resultados, dependendo do autor).
Mas é claro, eu não sou o especialista aqui, e acho que to falando um monte de bobeira.