Prefácio de Sock! Crash! Pow!

Série clássica e inovadora

Sílvio Ribas*

Para boa parte dos brasileiros de minha geração, sobretudo os garotos, falar sobre o seriado de TV Batman é fazer uma viagem de volta às horas felizes de nossa infância e adolescência. Os anos 70 e 80 nos trouxeram opções de lazer e entretenimento que mexiam com o imaginário e ainda nos provoca muita saudade daquilo que curtíamos e éramos. Batman – o mais badalado herói de ficção daqueles tempos – surgia em carne e osso na telinha da televisão, sempre na mesma bat-hora e bat-canal – para nos convidar a participar de aventuras que também divertiam os adultos.

Com o complemento das histórias em quadrinhos, dos desenhos animados – da Filmation e da Hanna-Barbera (Super Amigos) – e dos brinquedos, o público do qual eu fazia parte admirava um personagem único que já tinha e continuou tendo as mais diferentes faces e fases. Juntamente com as recentes versões do homem-morcego na telona do cinema, aquela composta pelo ator Adam West na TV é, até hoje, há exatas quatro décadas, a mais conhecida das multidões do planeta.

Ainda me vejo vestido com a capa e o capuz de cor preta e detalhes em branco pintados à mão, feitos por dona Mary, a minha mãe. Saía correndo para o quintal ou para o coreto da Praça da Matriz, em Curvelo (MG), minha terra natal. Brincava de Batman. Era como se tivesse recebido uma convocação do comissário Gordon. Nos fundos de casa mantinha uma bat-caverna com a porta camuflada com folhas, que se abria ao puxar uma corda, fazendo sair de lá o Batmóvel, tal qual aquela cena gravada para o seriado. Meu bólido da Gulliver era um orgulho que levava para a escola primária. A bat-lancha azul, então, era o máximo. De resto, uma caixa de papelão ornada com ampolas de injeção vazias era o meu bat-computador.

Por que tanta nostalgia? A capacidade daquele programa antológico (não há melhor adjetivo) atravessar esse tempo todo e chegar à atualidade com renovada aura de sucesso está na ousadia própria dos anos 60. Obra de culto para seguidores de todas as idades, alguns de longa data, esse produto televisivo norte-americano criado pelo genial William Dozier foi uma febre da juventude contestadora e sedenta por renovação, primeiro nos Estados Unidos e depois no resto do mundo.

Como parte daquela época, nunca uma atração do horário nobre mexeu tanto e em tão pouco tempo com as massas, sobretudo num período no qual a indústria cultural dava passos mais largos na promoção de idéias voltadas para o consumo universal. Foi um fenômeno ideal para se estudar os poderes da mídia e a sua especial aptidão em criar mitos e desejos. A mesma década de The Beatles e “Bond, James Bond” – que somados a Batman formavam os grandes três Bs dos sixties – foi bastante criativa em matéria de tendências e comportamentos.

O seriado, em particular, fez história na comunicação social e na cultura de massa antes mesmo de ir ao ar naquele histórico 12 de janeiro de 1966, na emissora americana ABC. A primeira das várias inovações criadas pelo versátil Dozier, produtor que se fazia até de locutor, foi o próprio marketing de lançamento. Depois, os primeiros dos 120 episódios (três temporadas) logo provocaram uma mania nacional representada pela excepcional audiência e por um fenômeno televisivo de primeiríssima grandeza.

A onda gerou inúmeros produtos licenciados que vendiam a Batmania. Ela disseminou novos costumes e bordões e influenciou até mesmo os roteiros das histórias em quadrinhos publicadas pela DC Comics, editora dona do personagem. O próprio Batman foi seduzido pelo seu show na TV, como sugere uma capa de gibi daquela época. Figuras que surgiram e permaneceram exclusivos nessa empreitada Dozier-ABC-Fox se integraram ao panteão batmaníaco, como o chefe O’hara e o Cabeça de Ovo.

Os até então pouco conhecidos Adam West e Burt Ward (nomes de guerra) se tornaram celebridades respectivamente como os satíricos Bruce Wayne (Batman) e Dick Grayson (Robin), seu inseparável parceiro na luta contra o crime. Eles também estavam acompanhados por uma estelar galeria de “vilões especialmente convidados”, como anunciavam os letreiros da abertura do programa. Só para citar uma dessas estrelas: Vincent Price, Cesar Romero e Liberace

A eterna dupla dinâmica parece ter dado passos que se tornaram saltos gigantes para a humanidade, a exemplo dos que o astronauta Neil Armstrong deu na Lua em 1969. West, Ward e as centenas de profissionais envolvidos na mais célebre série de todos os tempos deixaram suas marcas. Foram grandes contribuições para a forma de se fazer TV que vão dos trocadilhos nas vinhetas até as tomadas inusitadas de câmera. Suas cores e enredos incomuns deram novo estímulo à insipiente cultura pop, além de alargar o universo do personagem Batman iniciado em 1939.

As onomatopéias que cruzavam a tela nas seqüências de luta, as armadilhas quase circenses, o jingle inesquecível (Tã-rã-rã-rã-rã-rã... Batmannn...), os bordões “santa isso, santa aquilo” do menino-prodígio Robin, as curvas da gatíssima Mulher-Gato Julie Newmar (imbatíveis até hoje nas enquetes sobre qual atriz melhor encarnou a vilã), a participação do infalível Bruce Lee (referenciada pelo cineasta Quentin Tarantino em seu Kill Bill), Batman recitando Poe e Shakespeare, as batquinquilharias... Não faltam, enfim, imagens memoráveis.

Até mesmo o filme nascido da série deixou quadros dignos de replay. Com gosto de matinê, soda e pipoca, essa versão disponível em VHS e DVD traz cenas de ação hilárias como a do tubarão explosivo, o sacrifício da doninha que interceptou um torpedo e a da difícil tarefa de Batman em se livrar de uma bomba no cais. A sátira à Organização das Nações Unidas (ONU) é outro dado merecedor de nota. A caracterização pastiche das autoridades e a fleuma de Alfred reforçavam todo aquele non-sense.

Roteiros bem elaborados, experimentalismo na televisão e uma estética arrojada. Esse pacote de Batman inspirou até o jazzista Sun Ra na época e outros seriados cômicos da TV mais recentes como The Tick. As homenagens e referências não param, seja nos desenhos animados do Bob Esponja e dos Simpsons, em peças de teatro e até nos diálogos de sitcoms norte-americanos e britânicos. No mais, estão fãs criando sátiras na Internet (notadamente com palavreado chulo) e comunidades diversas de intercâmbio, além dos tradicionais caçadores de relíquias, como a capa histórica da revista “Life” ou protótipos metálicos do Batmóvel.

Nos Estados Unidos, a Batmania de 1966 ainda movimenta muitos negócios, tais como a fabricação de estátuas, venda de fotos autografadas pelo elenco, convenções, fornecedores de trajes “oficiais” e oficinas que criam réplicas do Batmóvel, xodó do criador George Barris e carro mais reconhecido do mundo conforme pesquisas recentes de opinião.

Objeto de teses acadêmicas até os dias atuais, a série foi dissecada no contexto da contracultura dos anos 60, na história da televisão e no mundo de Batman. Livros, artigos, documentários e reportagens especiais continuam trazendo novidades e desmistificando sobre fatos sobre o seriado, tanto de bastidores quanto das reações de telespectadores durante sua exibição original e nas incontáveis reprises em todo o globo.

Um desses aspectos fartamente explorados é a associação incorreta entre o estilo camp da série e uma temática deliberadamente gay. O suposto relacionamento homossexual entre Batman e Robin ainda sustenta piadas difundidas pela rede mundial de computadores, por textos literários e por artistas plásticos. Qual a razão disso? Aquele refinado espetáculo de inteligência e sarcasmo não foi totalmente compreendido em sua própria época mas acabou forjando uma obra-prima merecedora de estudos e inspiradora de muitas outras realizações artísticas. O impagável embuçado West tornou o mundo de Batman mais complexo e colorido, como é mostra compilações sobre a história do personagem, que aparecem geralmente pouco antes da estréia de um de seus blockbusters.

A trajetória da dupla Adam West e Burt Ward pode ser vista também como a de dois atores que conheceram a consagração antes de terem uma carreira solidamente construída. Para alguns críticos foi pura sorte. Mas para outros foi fruto de uma escalação acertada para os dois papéis. A fama que hoje se conhece em reality shows teria acontecido com eles. Contudo, ela não só perdurou como tornou, sobretudo West, um ídolo perene. Ele não mais vive à sombra de Batman e se tornou um ícone cultural por si mesmo.

Resultado da força do mito Batman? Em parte. Mas também teve o carisma pessoal que se combinou com aquilo que o seriado propunha e da melhor forma possível. Essa “química” talvez não tivesse dado tão certo com outros. Até os maneirismos criados pelos atores se tornaram detalhes inerentes dessa obra eletrônica e dos seus personagens. Os socos de Ward na mão e sua inquietude. No caso de West, a fala pausada, o gesto para ocultar o riso no set de filmagem e os braços cruzados em “x” no peito. Viraram marcas registradas.


Para boa parte das pessoas, Adam West é “o” verdadeiro Batman. Ele desistiu de lutar contra o estigma e, pelo contrário, abraçou o que a vida lhe deu. Exemplo disso está nos programas que participou como Batman e os presentes que recebeu de roteiristas, diretores e atores que também foram crianças de olho grudado na telinha para ver seu herói passar. Como dublador, foi melhor reverenciado no episódio O Fantasma Cinzento do desenho Batman, um testemunho do próprio realizador Bruce Timm. Nos quadrinhos, a história Batman da Vida Real também dá uma idéia dessa louvação coletiva. Outra foi quando, em 2005, a mansão onde a série foi gravada ardeu em chamas meses depois de ser comprada pelo ex-beatle Paul McCartney. A notícia despertou a atenção de milhões em vários países.

Este belíssimo livro que você, leitor, tem nas mãos mostra que, além da fidelidade aos sonhos do passado (que nunca envelhecem, como diz o poeta), o público continua se encantando com o repertório inovador de Batman, formador de ídolos e um crítico sutil com seu deboche de bom gosto. Os colecionadores japoneses de tudo que se relaciona ao seriado e os clubes norte-americanos de fãs criados por emissoras de rádio e publicações alternativas são boas ilustrações desse legado.

Os fiéis fanáticos, desde os mais explícitos que se vestem como West até os simples nostálgicos com seus imãs de geladeira, têm cada um seus episódios, personagens e até falas preferidos. Exemplos? Batman cruza com um índio ao entrar em um escritório, acena e o cumprimenta com um “cidadão!”. Para competir numa prova de surf, o herói usa uma bermuda sobre o uniforme. Para se manter incógnito, o fiel mordomo Alfred coloca uma máscara de ladrão sob os óculos. West dança o batusi na boate e no esconderijo do Rei Tut. “O milionário Bruce Wayne e seu pupilo Dick Grayson fazem higiene mental”, diz o narrador ao mostrá-los fazendo compras. A campanha eleitoral do Pingüim para prefeito, que se repetiu no filme Batman o Retorno. A lista não tem fim.

Quando escrevia, ano passado, o Dicionário do Morcego, projeto pessoal que acalentada há tempos, sabia de antemão que o “Batman de 1966”, para citar um termo próprio dos seus estudiosos independentes, merecia um guia confiável mais consistente. Por mais que os verbetes de meu livro tentassem cobrir todos os detalhes desse capítulo importante da bat-cronologia haveria questões não respondidas e seu retrato sairia fragmentado. A série Batman é importante não apenas para o mais conhecido personagem criado pelos colegas Bob Kane (que inclusive acompanhou de perto o seriado de Dozier desde a pré-produção) e Bill Finger. Foi, por exemplo, a primeira transposição explícita da linguagem típica dos quadrinhos para o meio áudio-visual.

Em 1996, a Ordem Filosófica do Homem-Morcego (OFHM), liderada por Márcio Escoteiro e o autor deste livro, presenteou os fãs com um especial sobre o seriado na edição número quatro de seu fanzine Tribuna do Morcego. Aí já estava uma das primeiras investidas de Jorge Ventura, grande colecionador e estudioso, para compartilhar conosco sua vasta compreensão da série. Talentoso e polivalente, ele conseguiu fazer o que muitos fãs e pesquisadores (ou apenas curiosos de plantão) queriam: um compêndio sobre o seriado em português, completado com curiosidades e uma rica narrativa repleta de cuidados que só os entendidos no assunto conseguem.

Além de ser pesquisador por hobby, Ventura também é profissional das comunicações e artes, como comunicador e ator. Sua experiência com dublagem de programas de TV estrangeiros lhe conferiu outro ângulo de visão privilegiado. Seus poemas de temática urbana deram sensibilidade extra. Por fim, como publicitário reconhece a importância da cultura de massa na formação de inconscientes coletivos.

Por isso, quando soube que ele faria este livro e, depois, ao ser convidado a escrever este prefácio, não tive dúvidas de que, finalmente, teríamos em breve nas mãos um trabalho sério e sincero sobre o “Batman de 1966”. Mais que isso: encontraria um relato autêntico dessa relação duradoura com o público, em particular o do Brasil, com o seriado. Parte integrante do seleto grupo de obras sobre o tema, como o conhecido inglês The Official Bat-Book e as biografias autorizadas de Adam West, Burt Ward e Yvonne Craig (a curvilínea bailarina que se tornou a Batgirl), este livro não tem comparação em qualidade e abrangência com nenhum outro. A missão foi cumprida.

* Jornalista, autor de Dicionário do Morcego.

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